Estou prenhe de Pernambuco. No mês passado, o estado que, em minha opinião, tem a bandeira mais bonita do Brasil, inebriou-me com dois eventos extraordinários. Participei da abertura da nova fábrica da Fiat Chrysler Automobiles (FCA) em Goiana; na prática uma estação espacial vanguardista fincada no meio das plantações sem fim de cana-de-açúcar. E acompanhei no cenário das igrejas coloniais de Olinda o histórico encontro entre o jazz de Wynton Marsalis e a Spok Frevo Orquestra, o conjunto de sopros brasileiros que não só é o melhor da terra de Ariano Suassuna e de Antonio Meneses como que tem poucos rivais no mundo inteiro.
Inaldo Cavalcante de Albuquerque, o maestro Spok, fundou em 2003, no Recife, a formidável big band, formada por 17 trompetistas, saxofonistas, trombonistas, mais guitarra, contrabaixo, bateria e percussão, que deixou “sem fôlego” os solistas americanos da “Jazz at Lincoln Center”, de Marsalis. Isso com um frevo tradicional, transformado, por improvisos geniais, em jazz vibrante: um amálgama de fogo!
Executando temas de Levino Ferreira, o maior compositor pernambucano de frevo de rua, carregaram Wynton e a banda pelas vielas de Olinda, o lugar mais típico para essa dança desenfreada dos pequenos guarda-chuvas coloridos. Como é de praxe, as excelências brasileiras são pouco conhecidas em casa, enquanto a Spok Frevo, que está gravando seu terceiro álbum (Frevo Sanfonado), é muito prestigiada em Paris, Nova York e Londres (onde The Times deu nota 5 a um de seus concertos: resultado máximo que o jornal britânico não concede a ninguém).
Acho que o povo de Pernambuco é de algum modo diferenciado. Tive essa confirmação também dos diretores da nova fábrica Fiat Jeep: “Nunca vimos, nem na Itália nem em Betim, trabalhadores tão capazes e espertos como estes: todos ex-cortadores de cana e catadores de caranguejos”.
Meu amor por Pernambuco remonta à Caravana da Cidadania de 1993, organizada por Lula, da nativa Garanhuns até a Região Sul do Brasil. Infelizmente, só fiquei dez dias naquele ônibus que pingava de povoado em povoado, lotado de personagens-chave do jornalismo brasileiro, como Ricardo Kotscho e Zuenir Ventura.
O PT tinha compilado um dossiê volumoso que continha tudo o que um repórter poderia sonhar de fazer ao longo do caminho, com sugestões de artigos e endereços direcionados para reportagens. Eu nunca vi tamanha maravilha jornalística. Quem sabe se ainda existe aquele livro enorme que passávamos de mãos em mãos enquanto o ônibus serpenteava pelas ruas de chão do Nordeste.
A imprensa italiana publicou todos os especiais que produzi naqueles dias. A “Orient Corporation”, um cinema de iugoslavos que percorria como um circo os vilarejos do sertão ainda sem luz elétrica. Dona Edviges, uma senhora de 86 anos, recoberta de moscas, que viu Lampião passar pela Caatinga. Pedro Pistoleiro, que entrevistei em uma estação de trem abandonada: um killer por encomenda que viu seu negócio reflorescer na crise econômica daqueles anos, agravada pela seca. Os mutilados de Valente, quase duas mil pessoas que tinham perdido a mão em uma máquina antediluviana, para obter, da folha do sisal, fibra para cordas.
Vi Lula chorar diante das centenas de manetas com seu braço erguido para saudá-lo, como tantos punhos fechados inexistentes. Eu me inteirei da miséria do Brasil. E Lula, tendo atravessado 359 aldeias e cidades em cinco “caravanas” até 1996, deve ter conhecido muito mais. Eu, com mais de 60 anos nas costas, quase me tornei um daqueles “anarquistas graças a Deus” imortalizados por Zélia Gattai. Por isso me atrevo a dizer que as pessoas, principalmente os que de São Paulo e do Rio participam das manifestações contra Dilma e o PT, não sabem como foram e como são hoje o Pernambuco e o Nordeste: o Brasil mais verdadeiro. E provavelmente ignoram Spok.
Oliviero Pluviano é jornalista e colunista da Carta Capital
Artigo publicado na revista Carta Capital, edição nº852 de 3 de junho