Ariano Suassuna foi homenageado na Bienal Brasil do Livro e da Leitura

Ariano por Breno Fortes

Em entrevista o autor falou sobre o livro que começou a ser escrito há mais de 30 anos, “O jumento sedutor”, além das conversas que anda tendo com Deus e das relações com a militância artística. Por Vanessa Aquino, Correio Braziliense.

Ariano por Breno Fortes

 

Após tomar o café da manhã, o que costuma ser a principal refeição do dia, o autor Ariano Suassuna, 86 anos, caminha lentamente pela área de lazer do hotel com o conhecido traje preto e vermelho, usado especialmente para cerimônias e entrevistas. Bem disposto, ele sorri ao elaborar cada resposta, como se a mente fosse invadida pelas figuras fantásticas que povoam o imaginário popular e também as próprias lembranças do escritor e dramaturgo. De Brasília, onde foi homenageado na Bienal Brasil do Livro e da Leitura e atraiu uma multidão de dar volta no quarteirão do Museu da República Honestino Guimarães, Suassuna falou sobre o livro que começou a ser escrito há mais de 30 anos, O jumento sedutor – romance com manuscritos inéditos, ainda sem previsão de lançamento -, além das conversas que anda tendo com Deus e das relações com a militância artística.

>> Ponto a ponto / Ariano Suassuna

A saúde

Foram dois sustos. No espaço de uma semana, eu tive um infarto e um AVC. Mas escapei bonito. Não acreditava em praga, agora estou acreditando. Praga de médico, sobretudo. Uns cinco dias antes, eu fui participar de um encontro de médicos em Ribeirão Preto (SP), era um congresso de cardiologia e o foco era hipertensão. Dei aula, mas pediram para eu participar de uma mesa redonda. Não sabia o que estava fazendo lá. Não sou médico e não tinha problema de pressão. Estou com 86 anos e minha pressão é 12 por 8. Disse: “Eu nunca vou ter um problema de coração. O meu problema pode ser câncer. Jamais terei nada no coração”. Voltei para casa e, em cinco dias, tive um infarto. Então, só pode ter sido praga (risos). Eu parei a rotina de trabalho, evidentemente, mas estou retomando agora.

O livro

O processo de criação é meio estranho. Por exemplo, vou ter que colocar o episódio do infarto. O texto já está pronto. Estou fazendo mudanças e colocando ilustrações que são todas feitas à mão. O livro também é escrito à mão. Eu só tenho prazer de escrever à mão. Sobre o livro, Quaderna vai voltar. Eu criei um personagem que é o protagonista do romance e Quaderna é o antagonista. Pretendo usar pessoas reais também. Quanto ao uso de figuras reais no meu livro, como minha literatura é muito fantástica, isso contribui para prender um pouco o universo do livro à realidade e dar uma certa credibilidade (risos). O livro foi feito em forma de castelo, que é um gênero literário criado pelos cantadores e folhetistas do Nordeste. O que eles chamam também de obra, marco ou fortaleza. Pois o meu romance pretende ser um castelo desses. Ninguém vai derrubar não. São sete volumes. Mas levo 30 anos para terminar o primeiro (risos) e tem que ser assim, não dá para se limitar. Estou aprontando e Deus queira que eu não bula mais.

Samico

Olha, homenagem tem várias a Samico. Inclusive, em um volume posterior, tem um personagem chamado Gilvano Silmarco. Éramos amigos fraternos e, além da grande amizade que nos unia, tem a admiração política, artística. Para mim, foi um dos maiores gravadores de todos os tempos. Eu reclamo sempre quando vejo o uso leviano de certas palavras. Outro dia, reclamei muito porque saiu no jornal que um guitarrista que tem por aí era genial. Discordo. Sou um escritor brasileiro e escrevo em português e a língua me dá trabalho, então, se eu uso um adjetivo com Chimbinha, o que vou dizer de Bethoven, ou de Vivaldi, ou de Mozart? Reclamei. Mas quando morreu Samico, eu li no jornal, que dentro da minha tristeza me deixou alegre: “Mundo perde a genialidade de Samico”. Aí, eu disse: “Agora sim, a palavra ‘genial’ está bem empregada”. E outra coisa: foi o mundo que perdeu. E, realmente, não há artista igual a ele no mundo todinho. Agora, ele nasceu em um país que não tem essa força de afirmação dos seus artistas.

Cultura popular

Da gravura, vou citar dois: J. Borges e José Costa Leite. Dentro da música popular, o mestre Salustiano, que não está mais vivo, e o alagoano Nelson da Rabeca, um grande músico popular. Da literatura, vivo não tem mais nenhum. A literatura de cordel considero um gênero importante da cultura popular. Morreu a pouco tempo, infelizmente, um que se chamava Francisco Sales Areda. Achava ele um poeta extraordinário, autor de um folheto chamado O homem da vaca e o poder da fortuna, que me levou a escrever A farsa da boa preguiça. Sem se falar no maior de todos, que houve até agora, o paraibano Leandro Gomes de Barros. Genial, extraordinário.

Com Deus

Converso muito com Deus, todos os dias. E entra muito assunto, muitos pedidos. Vergonhosamente, acho que tem mais pedido que agradecimento. Quando acho que estou incomodando muito, recorro a medianeira de todas as graças, que me acompanha a todo momento e para todo o lugar que vou, levo (segura a medalha de Nossa Senhora).

Militância artística

Eu procuro separar, porque não gosto da chamada arte engajada. Não gosto de colocar meu trabalho a serviço das minhas ideias. Acho que as ideias de um escritor podem e até devem aparecer no que ele escreve, mas ele não deve colocar a sua obra a serviço dessas ideias. Gosto muito quando aparecem as ideias no romance, mas ele não pode colocar o romance a serviço. Procuro separar. A minha militância em defesa da cultura brasileira acho que é a própria obra que deve sustentar. Gostaria de fazer do meu romance, antes de tudo, uma obra literária. Os mestres tinham essa tendência. Tenho vários mestres, inclusive na literatura brasileira, dos quais destacaria Euclides da Cunha e Lima Barreto. Gostaria muito que meu romance fosse uma continuação de Os sertões e de O triste fim de Policarpo Quaresma, que acho uma maravilha.

Televisão

Meus filhos dizem que eu não assisto a televisão, não. Que eu arengo, brigo com a televisão. Porque normalmente só existe coisa ruim, exatamente pela quantidade. Mas outro dia liguei a televisão, veja que beleza, que eu jamais teria oportunidade de ver, porque não saio do Brasil. Os músicos eram austríacos, a orquestra sinfônica de Viena, o regente era judeu e o pianista era um chinês endiabrado, tocando música ocidental, inclusive. Uma maravilha. Aí, a televisão me ajudou. Eu ia morrer sem ter visto.

Processo criativo

Prefiro escrever de manhã. De noite, não gosto porque perco o sono, minha cabeça continua trabalhando pensando nos problemas do romance e perco o sono, coisa que tenho horror. Mesmo quando viajo fico pensando sobre o romance. Ele não me abandona nunca, tomo notas porque senão posso esquecer. Para escrever, preciso do silêncio. Mas não tem mistério nenhum, não. (Honoré de) Balzac disse que só escrevia vestido de fraque. Eu me visto civilmente. Mas ele era uma figura engraçadíssima. No meu romance, o personagem diz para Quaderna que a humildade fica muito bem no santo, mas o escritor precisa ser ambicioso.

Traje “clássico”

Isso partiu de uma brincadeira. Eu recebi uma comenda portuguesa, A Ordem do Infante do Henrique, que me foi dada pelo ex-presidente Mário Soares e, quando a comenda me foi entregue no Recife, eu tinha lido o artigo de Gandhi e ele dizia que o indiano pertencente às classes poderosas, mas que amasse o seu país e o seu povo, não devia nunca vestir roupa feita pelos ingleses, pois seria cúmplice dos invasores e estaria tirando das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que elas tinham, que era a costura. Desde esse momento, decidi que não usaria mais paletó e gravata e que só vestiria roupa feita por uma costureira popular. Zélia, minha mulher, me apresentou a uma costureira extraordinária chamada Edite Minervina de Lima. Queria um tipo de roupa que fosse a média de trabalho de um brasileiro comum. Passei a usar mescla azul, caqui e branco. Aí eu fui eleito para a Academia Pernambucana de Letras, não queria chocar todo mundo e chamei Edite e disse: “Você faça uma roupa daquele jeito mesmo, mas preto com camisa branca. Ela fez e eu fui e não choquei ninguém e deu para tomar posse” (risos). E foi quando recebi a comenda. Quando chegou o convite, estava escrito assim: “Traje esporte fino”. Foi quando me lembrei que meu time é o Sport e resolvi colocar a roupa preta da Academia Pernambucana, preta, e uma camisa vermelha. Desse modo, fica a finura e o esporte. No caso: Sport Fino.

Perdas da vida

As perdas, comigo, começaram muito mal. Aos 3 anos de idade eu tive meu pai assassinado e isso me marcou pelo resto da vida. E outras perdas familiares, eu sempre fui muito ligado à família. Éramos nove irmãos e hoje somos quatro, ou seja, eu perdi cinco irmãos e de homem só resto eu. Como presentes, também ganhei a família. Tive uma família maravilhosa, inclusive, meu pai exerceu uma grande influência, apesar de ter convivido tão pouco. Primeiro, porque ele era um grande leitor e herdei dele uma biblioteca que não era comum no Sertão da Paraíba, se ainda hoje não é comum, imagina nos anos 1930. Herdei uma biblioteca extraordinária. Depois, essa personalidade que Deus me deu que me faz interessar muito pelo ser humano. O meu primeiro impulso, quando não conheço a pessoa, é gostar da pessoa. Acho a vida um espetáculo maravilhoso, tem momentos muito duros, mas a convivência com o ser humano é muito enriquecedora, muito boa. E, depois, qualquer que seja a dimensão dele, o talento que Deus me deu para transformar as coisas em história, seja no teatro ou na literatura.

 

Fonte: Diário de Pernambuco

Foto: Breno Fortes/D.A.Press

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